Mahavidya Yoga

Krishnamacharya, O Mestre dos Mestres
Flávia Venturoli de Miranda
01/02/2010

Conhecer um pouco da profícua vida de Krishnamacharya, nascido no século XIX, é fundamental aos praticantes de Yoga em pleno século XXI, já que ele, sem sair do subcontinente indiano, influenciou o Yoga do mundo todo. Vários de seus discípulos são muito famosos e são sinônimos de Yoga: B.K.S. Iyengar, cunhado de Krishnamacharya, foi seu aluno quando tinha 15 anos, conhecido por ter fundado estilo Iyengar YogaPattabhi Jois foi seu aluno quando tinha 12 anos, conhecido por ter criado o Ashtanga Vinyasa Yoga, de onde se desdobrou em Power Yoga. Srivatsa Ramaswami  [1] foi seu aluno mais de 30 anos, de quem saiu o estilo Vinyasa Yoga, de onde derivou em Vinyasa Flow. Indra Devi, letã, tinha 38 anos quando foi sua aluna e ficou conhecida como a Primeira Dama do Yoga em Hollywood. A.G. Mohan, com 2 livros no Brasil, estudou por 18 anos e dirige o Svastha Yoga e Ayurveda. T.KV. Desikachar, filho de Krishnamacharya, foi seu aluno por 29 anos, fundou o Krishnamacharya Yoga Mandiram.

Mas afinal quem foi Krishnamacharya?

Tirumalai Krishnamacharya nasceu em 18 de novembro de 1888, em um vilarejo no estado de Mysore, sul da Índia. O filho mais velho de 6 crianças de uma família vaishnava, descendentes do sábio Nathamuni, da tradição Shri Vaishnava Sampradayam. Essa tradição é uma linha religiosa vishishtadvaita muito popular no Sul da Índia, cujos seguidores têm como divindades principais: Vishnu e sua esposa Lakshmi.

 

Seguindo a tradição gurukula, Krishnamacharya teve como primeiro mestre seu próprio pai, com quem estudou Sânscrito; cânticos e rituais sagrados; os Vedas; Yoga Sutra; Yoga asanas e pranayamas. Seu pai, o pandit  [2] Shrinivasa Tatacharya, que era um grande estudioso, lecionava para poucos alunos por vez (não mais de 12) e sempre trabalha com cada um em particular, em um relacionamento guru-shishya (mestre-discípulo). A proximidade do professor com o aluno (upadesha) permitia atender as necessidades, potencialidades e carências de cada aluno em particular.

 

Quando Krishnamacharya tinha 10 anos, seu pai faleceu. Seu avô, nessa época, era um pontífice, ou seja a principal autoridade sacerdotal, da capital do reino de Mysore, Parakala Math, que era uma espécie de “Vaticano” para os seguidores do Sri Vaishnava Sampradayam. Krishnamacharya, então, foi levado para estudar nesse centro religioso, onde aprendeu Vyakarana (gramática do sânscrito), Vedanta e Tarka (lógica), sobre a tutela de seu avô. Foi nessa época que se mostrou proficiente em muitas áreas de conhecimentos e já se ocupava em debates acadêmicos.

 

“Essas mudanças incendiaram sua fome por sabedoria, e, para citar suas próprias palavras, ‘foi assim que descobri que ali havia muito mais para aprender’.” [3]

 

Com 16 anos teve uma experiência transcendental ao visitar o santuário do sábio Nathamuni em Alvar Tirunagari:

Templo Shriman Nathamunigal Avathaara Thirumaligai Photos by Krishvanth no Picasa.

 

“Como sempre contou a história, Krishnamacharya narra que encontrou no portão do templo um homem velho que  lhe fazia sinal apontando uma mangueira próxima. Krishnamacharya caminhou em direção a ela e desmaiou ao pé da árvore, exausto. Quando levantou, viu três yogi que estavam ali reunidos. Seu ancestral Nathamuni sentava-se no meio. Krishnamacharya prostrou-se diante dele e pediu-lhe instrução. Por horas, Nathamuni entoou para ele  versos do Yogarahasya (em Sânscrito, A Essência do Yoga), um texto perdido mais de mil anos antes. Krishnamacharya memorizou e mais tarde transcreveu esses versos.

 

As sementes de vários elementos dos ensinamentos inovadores de Krishnamacharya podem ser encontradas nesse texto, que está disponível numa tradução para o Inglês (Yogarahasya, traduzido por T.K.V. Desikachar, Krishnamacharya Yoga Mandiram 1998). Apesar de a narrativa sobre sua autoria poder parecer fantasiosa, ela aponta para um importante traço da personalidade de Krishnamacharya: ele nunca reivindicou originalidade. Em sua visão, o Yoga pertencia a Deus. Todas as suas idéias, originais ou não, ele atribuía a textos antigos ou a seu guru.”[4]

 

O acontecido com Nathamuni, mudou a vida de Krishnamacharya que se dedicou a se aprofundar nos estudos do Yoga. Ao retornar do santuário para Mysore, continuou seus estudos em vários shastras e ganhou o título de vidvan (professor). Contudo, isso não o satisfez, sua questão era a sabedoria e não um título, então decidiu se aprofundar e conhecer toda a gama de ensinamentos filosóficos da Índia, acabando por estudar todos os 6 darshanas. Em 1906, voltou a estudar gramática sânscrita. Estudou lógica, em 1909, como também Vedanta e Rahasya Traya Sara. Nesse período que estudava na universidade em Mysore e ganhou o título de Veda Kesari (dado a quem é bem versado nos Vedas) e o título de Mimamsa Vidvan (de estudioso da filosofia Mimamsa).

 

6 Darshanas - pontos de vistas filosóficos

  • Yoga
  • Samkhya
  • Vedanta
  • Mimamsa
  • Vaisheshika
  • Nyaya

 

Com sua característica de antevasin (aquele que permanece no estudo até o fim) continuou seus estudos na Queens College, em Varanasi, recebendo a qualificação de Upadhyaya (professor). Com essa credencial, tomou o posto de palestrante assistente, e um dos diretores da faculdade, o Yogacharya Ganganath Jha, encarregou-o de ser o professor de seu filho.

Krishnamacharya candidatou-se aos exames em Samkhya e Yoga na Universidade de Patna, que passou com distinção, indicado a candidatura particular graças a indicação de um homem santo chamado Shri Baba Bhagvan Das, impressionado com seu conhecimento e interesse genuíno pelo Yoga.

 

Krishnamacharya queria continuar a seguir as orientações dadas pelo seu pai e ser um mestre no Yoga Sutra, por isso, o Yogacharya Ganganath Jha o aconselhou a viajar para o Nepal estudar com o yogi Rama Mohana Brahmachari.  Assim Ganganath lhe deu permissão para partir e uma carta de recomendação para o vice-rei. Porém o vice-rei adoecera devido a diabetes e Krishnamacharya teve que esperar para ser convidado a viajar para o Tibete. Finalmente, o vice-rei o convidou, mas lhe pediu que primeiramente o ajudasse no tratamento da sua diabetes. Quando através das aulas de Yoga, o vice-rei teve sua diabetes sob controle, Krishnamacharya (com cerca de 28 anos) partiu a caminho de Kailash, no Tibete. Em 1916, após uma longa viagem pelo Himalaia, chegou a Manasorovar e finalmente encontrou, à porta da caverna, aquele que viria ser o seu guru, Rama Mohana Brahmacari, juntamente com a família: esposa e 3 filhos.

 

No início, seu guru o testou de várias formas para provar seu comprometimento verdadeiro com a busca pelo conhecimento do Yoga. Enfim, foi aceito como discípulo e viveu como membro dessa família por 7 anos e meio, servindo e estudando. Aprendeu asanas, pranayamas e Yoga chikitsa (terapia do Yoga) e desenvolveu seu vajrakaya (corpo de diamante). Segundo o artigo de Fernando  Pagés Ruiz2:

 

“Durante seu aprendizado, Krishnamacharya afirma ter dominado 3.000 asanas e desenvolvido algumas de suas mais notáveis habilidades, como a de parar seu pulso.”

 

 

Seu guru também o fez memorizar vários textos, entre outros: o Yoga Sutra e o Yoga Kurunta ou Gurundam (um texto em língua nepalesa, gurkha). Segundo a biografia de Krishnamacharya, escrita por Kausthub Desikachar, seu neto:

 

“...Yoga Kurunta continha uma valiosa informação, inclusive de como adaptar asana e pranayama para diferentes necessidades individuais, e como usar certos suportes (props, na linguagem atual) para ajudar no processo de cura. Krishnamacharya escreveu para si mesmo sobre este texto, hoje perdido, e suas palavras contradizem a noção popular que sustenta que o Yoga Kurunta foi a base do Ashtanga Vinyasa Yoga.” [5]

 

A Índia, nessa época, estava sob o domínio Britânico, e, por isso em rápida modernização e ocidentalização. Os valores ocidentais ameaçavam “substituir” as instituições ancestrais indianas, pondo em risco de se perder muito de sua cultura, valores e tradições, inclusive a do Yoga, cuja profundidade do ensinamento dependia de sua real compreensão. Portanto, em troca por seu aprendizado (guru dakshina), Rama Mohana Brahmacari deu a incumbência a Krishnamacharya de difundir os ensinamentos do Yoga, usar suas habilidades de curador e constituir família.

 

Assim, ele voltou para Índia. Conclui várias graduações em universidades de Calcutá, Allahabad, Patna e Baroda. No seu retorno a Varanasi, foi muito bem recebido por seus mestres Ganganath Jha e Gopinath Kaviraj. Embora, tenha recebido os importantes títulos de Mimamsa Ratna, Nyayacharya e por fim Nyaya Ratna, não embarcou numa carreira acadêmica. Teve alguns jovens como seus alunos de Yoga, várias ofertas de trabalho com maharajas, participou de vários debates filosóficos e ajudou em contendas filosóficas entre lideres locais. Já havia terminado sua educação formal e estudara todas as escolas filosóficas da Índia, além de Ayurveda, astrologia, música, vários idiomas (segundo seu neto, Kausthub, Krishnamacharya falava 12 línguas oficias da Índia)[6].

 

Foi nessa época, quando da morte do pontífice de Parakala Math, que solicitaram a Krishnamacharya que assumisse como próximo pontífice do Sri Vaishnava Sampradayam. O que o colocou em uma situação complicada, já que havia se comprometido com seu mestre que dedicaria sua vida ao Yoga. Com uma citação antiga, ele declinou da oferta: “shiveruste gurustrata, guroriste na kashcana”, cuja tradução seria: ‘Se você deixar os deuses na mão, o professor será capaz de protegê-lo; se você deixar o professor na mão, ninguém será capaz de salvá-lo’.[7] Sua opção pelo Yoga surpreendeu seus familiares, mas isso não mudou seus planos.

 

Krishnamacharya com seus certificados e medalhas, pouco tempo antes de seu casamento.

 

Com a finalidade de não deixar morrer a tradição, e atrair a atenção das pessoas para as possibilidades do Yoga, Krishnamacharya demonstrava suas siddhis, fazia apresentação de asanas e dava palestras. Aos 36 anos, em 1924, retornou a Mysore, onde o rei, Maharaha  Krishnaraja Wodeyar, encantado com sua erudição lhe deu a oportunidade de lecionar Yoga para ele e sua família. Em 1925, casou-se com a jovem Namagiriamma, uma menina 25 anos mais jovem que ele, irmã de B.K. Iyengar.

 

Com o incentivo e auxílio do rei, foi aberta escola de Yoga (Yoga Shala) no palácio de Mysore, cujo objetivo era promover os benefícios do Yoga às pessoas do reino. Krishnamacharya dava aulas separadas para ambos sexos, tanto jovens como adultos. As pessoas enfermas, Krishnamacharya atendia particularmente para tratamento terapêutico. Também havia treino para que seus estudantes se tornassem instrutores, especialmente em asana e pranayama.

 

Nessa época na Índia, era considerado inadequado o ensino de Yoga para mulheres e Krishnamacharya rompeu esse dogma ensinando para mulheres de todas as idades, inclusive para gestantes. A começar em sua própria casa, já que sua esposa, cunhada, filhas, noras e netas foram suas alunas. Na verdade todos seus 6 filhos aprenderam Yoga desde a infância.

 

Para os mais jovens as aulas eram vigorosas com posturas dinâmicas e sequências orgânicas, a quem ele exigia a maestria de todas sequências, chamadas de vinyasa krama. Essas sequências eram mais atraentes e úteis para a vitalidade e formação das crianças. Essa categoria de prática era chamada pelos yogis antigos de shrishti krama, onde o foco está no desenvolvimento da criança, tanto no crescimento físico, mental, psíquico e emocional. Outra contribuição de Krishnamacharya ao Yoga, foi o conceito de pratikriya asana, que são as posturas compensatórias ou contra posturas. Foi nessa época que os famosos mestres de Yoga estudaram, B.K.S. Iyengar com 15 anos e Pattabhi Jois com 12 anos.

 

Em 1927, Pattabhi Jois assistiu uma palestra sobre Yoga dada por Krishnamacharya no Hassan. No dia seguinte, escondido dos pais, começou suas aulas diárias de Yoga com Krishnamacharya que duraram vários anos. Para Jois, Krishnamacharya era “um homem muito bom, um caráter forte. Um homem perigoso.”[8]

 

Iyengar, seu cunhado, foi uma criança muito doente, debilitada, e por isso foi se tratar pelo Yoga com Krishnamacharya. Estudou por cerca de 2 anos (1934 a 36), nos quais Iyengar descreve ter tido apenas 10 a 15 dias de aula. Krishnamacharya lhe pediu para lecionar em Puna e lá se estabeleceu continuando se estudo de Yoga por si mesmo.. Apesar de respeitar o aprendizado que lhe foi dado, sempre o achou exageradamente severo e autoritário, chamando-o inclusive de “o ditador de Mysore”.[9]

 

Aos adultos, Krishnamacharya tinha uma outra abordagem personalizada cuja prática, chamada de rakshana krama, enfocava alguns asanas simples, muito pranayamas e meditação. Para cada aluno havia uma aula específica, considerando a etapa em que se encontrava, sua capacidade, e assim gradativamente se avançava ao objetivo do aluno.

Srivatsa Ramaswami

 

Outra abordagem era o chikitsa krama, ou seja terapêutica, quando Krishnamacharya usava cuidadosamente as muitas ferramentas do Yoga para aliviar e tratar problemas físicos, mentais, emocionais ou psíquicos. Devido as limitações físicas de alguns desses alunos, Krishnamacharya desenvolveu suportes especiais que possibilitavam as práticas, como o uso de cadeiras, rolinhos de tecido, etc, o que atualmente é chamado de “props”. Através do seu conhecimento de Ayurveda, Krishnamacharya cultivava plantas e árvores, e preparava ele mesmo os remédios para seus alunos.

 

As abordagens práticas do Yoga para Krishnamacharya eram:

  • shrishti krama, para crianças e jovens visando desenvolvimento estrutural físico, emocional e mental, onde o foco era maior nos asanas, comumpouco de pranayama e meditação
  • rakshana krama, para adultos saudáveis, visando um equilíbrio maior das energia sem uma fase em que o desgaste maior está na mente e nas emoções, por isso o foco estava em alguns asanas simples, com muito pranayama e meditação.
  • chikitsa krama, para enfermos visando a curaou o alívio, compráticas do Yoga adaptadas terapeuticamente.
  • shikshana krama, principalmente para professores de Yoga, onde o foco estava na maestria da execução das ferramentas do Yoga sem erro, com total perfeição. Também era ensinado como adaptar essas ferramentas para cada caso.
  • adhyatmika krama, era a prática de Yoga para a busca espiritual, independentemente da religião de devoção. Por isso para hindus, Krishnamacharya ensinava mantras para Narayana, Ganesha etc. Para cristãos a meditação era em Jesus ou Maria, para os islâmicos o foco estava em Allah e para os não teístas a meditação dada era em coisas da natureza como o sol, a montanha, o coração etc.
  • shakti krama, foi a prática com que Krishnamacharya desenvolveu certas siddhis, mas que ele não achava que seria útil realmente para sociedade atualmente, por isso não ensinava.

 

Quanto aos pranayamas [10], Krishnamacharya contribuiu ao Yoga, com o uso de diferentes matras, de vaikhari e do refinamento dando ênfase no rechaka e no bahya kumbhaka, e a habilidade do uso dos bandhas. Também baseado nos conceitos do Ayurveda, Krishnamacharya concebeu o pranayama como bhramana (foco na inalação longa) e langhana (foco na exalação longa), associados aos asanas como um processo de svadhyaya e de exploração dos limites do uso da respiração consciente. Mesmo aos asanas e pranayamas, Krishnamacharya acrescentou a idéia de bhavana, ou seja do uso dos pensamentos, visualização e meditação. Aqui ele cunha uma belíssima expressão que mostra como o pranayama era importante para ele:

 “Inala, e Deus se aproxima de ti. Retém a inalação, e Deus permanece contigo. Exala, e tu te aproximas de Deus. Retém a exalação, e  entrega-te a  Ele” [11].

 

O rei de Mysore empolgado com progresso dos jovens alunos de Krishnamacharya, propôs que escrevesse um  livro para ensinar asanas aos jovens. Então em 1931, seu primeiro livro, Yoga Makaranada, foi lançado com sequências de asanas detalhadas como as ensinadas no Yoga Shala. Aqui já está presente, uma didática importante para crianças em sua idéia de vinyasa como um conjunto estruturado de grupo de posturas, onde uma conduz à outra, como as palavras em uma frase[12]. O objetivo do vinyasa é começar de onde se encontra, avançar até um certo ponto e depois retornar para onde deveríamos estar. Dessa fonte é a origem de muitas sequências do que foi chamado por Pattabhi Jois de Ashtanga Vinyasa Yoga.

 

Desde 1934, afirma que “o Yoga deve ser adaptado ao indivíduo e não o indivíduo ao Yoga”[13]. Essa adaptação se baseia nas diferenças de idade, sexo, cultura, religião, saúde, fase da vida, interesse, profissão, hábitos, etc.

 

Por conta do lançamento do livro Yoga Makaranada, sua fama se espalhou e alunos da Índia e do ocidente vinham estudar com ele. Cientistas ocidentais também ficaram sabendo do extraordinário yogi que para parava o próprio coração. Em 1936, o professor Wenger da Califórnia e o Dr. Therosse Brosse de Paris, entre outros, conduziram um experimento para testar a hipótese de que um yogi poderia voluntariamente mudar os batimentos cardíacos. Krishnamacharya parou seu coração por mais de 2 minutos e segundo o Dr. Brosse:

 “... não apenas ele provou além de qualquer sombra de dúvida que as ações mecânicas e elétricas do coração podem ser modificadas pela vontade, o que o ocidente não considera possível, mas ele nos habilitou a apresentar fundamento para uma análise do estado yóguico de que nós pressupúnhamos.”[14]

 

Em 1937, durante uma estadia no palácio de Mysore, Eugenie Peterson, esposa de um diplomata amigo do Maharaja, soubera que ali haviam aulas de Yoga. Ela pediu ao rei para participar das aulas. De início, Krishnamacharya estava cético em tê-la como aluna, mas pela persuasão do rei, ele concordou sob a condição dela seguir rigorosamente as orientações quanto a dieta e horários. Essa ocidental deveria mostrar sua real intenção e comprometimento com Yoga para que ele continuasse a ensiná-la. Ela conseguiu resistir a toda tentação dos banquetes e festividades do casamento que lhe trouxera à Índia, se alimentando só de frutas, terminando seu dia com uma prática de Yoga ao anoitecer e iniciando no amanhecer sua aula com o Krishnamacharya. Eugenie, nascida na Letônia em 1899, veio a ser chamada de Indra Devi, viveu 103 anos. Levou o Yoga para União Soviética e China. Foi professora de Yoga de muitos atores e atrizes de Hollywood, onde publicou seu primeiro livro em 1953. Com aulas de Yoga mais suaves, as limitações físicas eram desafiadas de forma mais cômoda, assim ficou conhecida as aulas da “Primeira Dama do Yoga”, que morreu em 2002 na Argentina.

Indra Devi

 

Em 1938, nasceu seu 4º filho, T.K.V. Desikachar, que recebeu o nome do sábio vishishtadvaita Vedanta Desikacharya. Nessa época, Krishnamacharya deu aulas para vários Maharajas e até para o Imperador (nizam) de Hyderabad e sua família, incorporando elementos da filosofia Sufi. Krishnamacharya e o Yoga Shala já estavam bastante conhecidos e comumente o rei o enviava para espalhar a mensagem do Yoga nos reinos e cidades por toda Índia. Em visita a Puna, pediu a seu aluno, Iyengar, que ficasse ali e ensinasse Yoga. Assim Iyengar se estabeleceu em Puna, virando seu lar e fundou o Ramamani Iyengar Memorial Yoga Institute.

Krisnamacharya Yoga Film 1938 (silent)

Krishnamacharya executando sequência de asanas em 1938

A década de 1940 foi bastante intensa, havia um renascimento da tradição do Yoga, Krishnamacharya era muito solicitado tanto pelo Yoga como pelo ayurveda, fizera muitas viagens dando palestras, demonstrações, ensinando e tratando terapeuticamente. Krishnamacharya e o Yoga Shala eram custeados pelo generosidade do rei de Mysore e por isso, Krishnamacharya não via necessidade de ser remunerado por sua atividade.

 

Porém com a independência da Índia em 1947, o maharaja perdeu seus poderes e não podia mais sustentar o Yoga Shala. O ministro chefe indicado para Mysore, não considerava Yoga algo importante. Assim por falta de renda o Yoga Shala fechou em 1950, quando Krishnamacharya estava com 62 anos e 5 filhos. Se seguiram períodos difíceis para a família de Krishnamacharya pois não tinham mais moradia e nem renda, mas Krishnamacharya tinha uma grande mulher ao seu lado e a benção do seu mestre. Nesse ano, ele foi convidado por um empresário para dar aulas para ele em Madras, mas sua família permaneceu em Mysore, onde nasceu sua última filha. Krishnamacharya foi contratado como professor no Vivekananda College no Chennai, deu aulas para advogados e juristas. Por fim já havia bastante trabalho em 1956, quando a família acabou por se mudar para Madras, apenas Desikachar ficou para terminar a universidade.

 

Nesse período Krishnamacharya escreveu livro Yogasanagalu, que na língua kannada (sua língua natal, falada em Mysore) significa Yoga asana, onde descreve o conceito de ashtanga Yoga de Patanjali e descreve 3 categorias de condutas que devem ser escolhidas para cada estudante: para iniciantes, intermediário e avançados.

 

Segundo Fernando Pagés Ruis, data dessa época a abordagem conhecida hoje como Viniyoga:

“Por exemplo, ele instruiria um aluno a fazer Pascimottanasana (flexão à frente sentado) com os joelhos retos, para alongar seus músculos posteriores, enquanto um aluno mais rígido aprenderia a mesma postura com os joelhos flexionados. De forma semelhante, ele poderia variar a respiração para atender as necessidades do aluno, às vezes contraindo o abdômen, para enfatizar a exalação, outras vezes apoiando as costas, para enfatizar a inalação. Krishnamacharya variou a duração, a freqüência e a maneira de por em seqüência os asanas para ajudar os alunos a alcançar metas a curto prazo, como se recuperar de uma doença. À medida que a prática dos alunos progredia, ele os ajudaria a refinar os asanas em direção à sua forma ideal. Em seu modo individual, próprio, Krishnamacharya ajudava seus alunos a moverem-se de um Yoga adaptado às suas limitações para um Yoga que ampliasse suas capacidades. Essa abordagem, que hoje é comumente designada como Viniyoga, tornou-se a marca registrada do ensino de Krishnamacharya durante suas décadas finais.”[15]

 

Viniyoga: aplicação adequada e continua

tasya bhumishu viniyogah/ Yoga Sutra III.6

Estas (práticas) apropriadas devem ser aplicadas considerando o nível onde o estudante está.*

 

Viniyoga, no ocidente, virou nome do estilo de Yoga do Krishnamacharya ou do Desikachar, o que é um grande equívoco. Já que a invenção de estilo é recente, e não é aplicável ao Yoga.[16] Yoga é uma filosofia só, sem estilos, o que há são abordagens diferentes de sua aplicação e ferramentas. O ocidente sempre é muito empenhado em “reinventar a roda” e depois patenteá-la como novidade, dá vários nomes novos para a mesma coisa antiga e tradicional, reduzindo a tradição a um mero produto mercadológico.

T.K.V. Desikachar, filho e discípulo de Krishnamacharya

 

Desikachar, segundo conta, havia praticado Yoga asanas e pranayamas quando era criança, mas fugia sempre que possível. Se afastou do Yoga até, que por volta de 1961, já formado engenheiro, trabalhava no norte da Índia e passara pelo Chennai em visita aos pais. Estava sentado na varanda da casa de seus pais quando de um carro saiu uma estrangeira chamando pelo seu pai. Quando Krishnamacharya se aproximou, ela deu um forte abraço nele e gritou: “Eu dormi, eu dormi! Obrigada, muito obrigada!”. Desikachar se chocou ao ver seu pai recebendo o abraço de bom grado, já que ele era um brahmin austero e mesmo hoje em dia é incomum na Índia um homem e uma mulher se tocarem em público. Quando a senhora foi embora, ele foi ter com seu pai. Krishnamacharya contou-lhe que vinha tratando da insônia dessa senhora da Nova Zelândea através do Yoga há alguns meses e que a noite anterior ela havia conseguido dormir sem precisar de sonífero, após 20 anos de insônia. Por isso estava esfuziante.

 

Ferramentas do Yoga

  • yama,
  • niyama,
  • asana,
  • pranayama,
  • bandha,
  • mantra,
  • canto,
  • meditação,
  • prece,
  • visualização,
  • reflexão,
  • ahara (alimentação),
  • shilam (modo de vida), etc.

 

Esse incidente mexeu com Desikachar, pois efetivamente viu o poder e o trabalho de curador de seu pai. A partir de então decidiu largar a carreira de engenheiro civil e estudar Yoga com seu pai. Seu pai, no princípio, ficou relutante e pôs seu filho a prova. Desikachar devia estar pronto as 3:30 da manhã para os estudos: asanas, pranayamas e o canto do Yoga Sutra. Desikachar só colocou uma condição: Nada de Deus [ 17].

 

Krishnamacharya aceitou os termos. A dedicação de Desikachar provou seu interesse real pelo Yoga. Desikachar estudou com seu pai por 29 anos[19]

 

Por gratidão ao seu aprendizado com seu pai, Desikachar, em 1976 fundou o KYM – Krishnamacharya Yoga Mandiram, cuja a missão é continuar a espalhar a mensagem do Yoga e o legado de Krishnamacharya. O KYM é uma instituição sem fins lucrativos reconhecida pelo governo indiano como Entidade Pública Beneficente que abrange as áreas de Yoga Terapia, estudos do Yoga, pesquisa, Cantos Védicos e a fundação KYMF.

 

Krishnamacharya continuou aperfeiçoando sua maneira de ensinar Yoga durante toda a vida[20]. Passou, nos anos 20, pelo autodomínio de seu próprio corpo, vajrakaya, conquistando siddhis. Nos anos 30, durante o ensino do Yoga para jovens, elaborou os vinyasa krama. Dos anos 30 aos 50 se seguiram com Yoga chikitsa, formação de professores de Yoga e prática para ambos os sexos. Nos anos 60 e 70, o foco era a perfeição das posturas não só como forma, mas como respiração em uma determinada métrica por toda a série. Na década de 70, Krishnamacharya aperfeiçoou ainda mais seu método adaptando ao Yoga a capacidade do aluno como ponto de partida para o objetivo desejado (saúde, autoconhecimento, espiritual, etc.). No início dos anos 80, ao perceber que seus alunos tinham cada vez menos tempo para sua prática diária de Yoga, Krishnamacharya otimizou o tempo da prática e desenvolveu o método angalaghava, que proporcionava leveza ao corpo e exigia menos tempo. No final da década de 80, introduziu os cânticos (védicos, ou segundo a cultura e a tradição espiritual de cada aluno) às práticas de Yoga, para auxiliar os alunos no caminho espiritual.

 

Segundo Desikachar[21], a prática diária de Krishnamacharya, que era severamente disciplinado, consistia em acordar por volta das 3 da madrugada, fazer asanas e pranayamas. Por volta da 5 da manhã, começa seu ritual à sua divindade pessoal, em seguida entoava vários cânticos védicos junto com nyasas. Depois do café da manhã, as aulas eram dadas  a partir das 7 até a hora do almoço. A tarde começa, às 3 e ia até as 6 horas. Às 6 da tarde depois das aulas, ele executava seus rituais do anoitecer. Depois atendia mais alguns poucos alunos ou aproveitava o tempo com sua esposa e netos.

 

Krishnamacharya foi um sábio, um erudita, um curador, um yogi. Descrito tanto como um homem fascinante e bondoso, como vigoroso, ríspido e severo. Era rígido com sua tradição e seus valores e quebrava as regras obsoletas. Sua memória prodigiosa permitia-o saber décor o Mahabharata, o Ramayama inteiros, como também vários trechos dos Vedas, várias Upanishads e outros shastras. Era inteligentíssimo e hábil. Tinha uma fé inquebrantável. Era poeta, cantor e escreveu comentários sobre textos sagrados do Yoga. Foi dito que ele cozinhava bem, cultivava suas próprias ervas. Longevo Tirumalai Krishnamacharya morreu com mais de 100 anos em 1989.

Krishnamacharya aos 100 anos Photo Copyright © Kausthub Desikachar and KYM  

 

Resumidamente foi um homem que mudou o curso da história, mesmo embora alguns professores no Brasil o considere como um prejuízo para o Yoga no mundo, creio que seja mais por falta de informação do que pela história da vida desse sábio.

Kausthub Desikachar e T.K.V. Desikachar, neto e filho de Krishnamacharya

 

junho/2009 publicado no boletim da IYTA

 

[1] in, My Studies With Sri Krishnamacharya, por Srivatsa Ramaswami, Namarupa , Spring 2007

[2] in Memories of a Great and Revered Master, by “Hastam” in Kaimargal, Pongal, 1984, translated by Bert Franklin with S. Venkataraman - www.dharmadownloads.info/asserts/T_Krishnamacharya.pdf
[3] pg 31 do livro: The Yoga of The Yogi – The Legacy of T. Krishnamacharya, KYM, 2005, de Kausthub Desikachar
[4] trecho do Legado de Krishnamacharya – de Fernando Pagés Ruiz, tradução para o português de Maria Nazaré Cavalcanti. Esse artigo foi publicado na revista Yogajournal de Mai/Jun 2001. Sua versão original em inglêspode ser encontrada on-line no seguinte endereço: www.Yogajournal.com/wisdom/465_1.cfm e em português: http://www.ailha.com.br/jorgeknak/artigo5.asp
[5] pg 60 do livro: The Yoga of The Yogi – The Legacy of T. Krishnamacharya, KYM, 2005, de Kausthub Desikachar
[6] in T. Krishnamacharya e seu Yoga, por Kausthub Desikachar, 2005, http://www.ailha.com.br/jorgeknak/artigo1.asp
[7] pg 66 do livro: The Yoga of The Yogi – The Legacy of T. Krishnamacharya, KYM, 2005, de Kausthub Desikachar
[8] pg 7, GURUS, 48 QUESTIONS, matching interviews with Sri T.K.V. Desikachar, Sri B.K.S. Iyengar & Sri K. Pattabhi Jois, Interviews by R. Alexander Medin, Namarupa, Fall 2004
[9] pg 12, GURUS, 48 QUESTIONS, por R. Alexander Medin, Namarupa, Fall 2004
[10] in My Father’s Yoga, by T.K.V. Desikachar (provavelmente 1987) - www.dharmadownloads.info/page4/asserts/MyFathersYoga.pdf
[11] trecho do Legado de Krishnamacharya – de Fernando Pagés Ruiz, tradução para o português de Maria Nazaré Cavalcanti
[12] in My Father’s Yoga, by T.K.V. Desikachar (provavelmente 1987) - www.dharmadownloads.info/page4/asserts/MyFathersYoga.pdf
[13] in My Father’s Yoga, by T.K.V. Desikachar (provavelmente 1987) - www.dharmadownloads.info/page4/asserts/MyFathersYoga.pdf
[14] pg 99 do livro: The Yoga of The Yogi – The Legacy of T. Krishnamacharya, KYM, 2005, de Kausthub Desikachar
* pg 111 do livro: The Yoga of The Yogi – The Legacy of T. Krishnamacharya, KYM, 2005, de Kausthub Desikachar
[15] trecho do Legado de Krishnamacharya – de Fernando Pagés Ruiz, tradução para o português de Maria Nazaré Cavalcanti.
[16] in The Myth of Style in Yoga, de Robert Birnberg, 16 de maio de 2007, acessível no endereço: http://www.khyf.net, seção Articles.
[17] in Legado de Krishnamacharya – de Fernando Pagés Ruiz, tradução para o português de Maria Nazaré Cavalcanti.
[18] pg 9, in GURUS, 48 QUESTIONS by R. Alexander Medin, Namarupa, Fall 2004
[19] pg 11, in GURUS, 48 QUESTIONS, by R. Alexander Medin, Namarupa, Fall 2004
[20] in T. Krishnamacharya e seu Yoga, por Kausthub Desikachar, 2005, http://www.ailha.com.br/jorgeknak/artigo1.asp
[21] pg 129 do livro: The Yoga of The Yogi – The Legacy of T. Krishnamacharya, KYM, 2005, de Kausthub Desikachar

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